Temos trabalhado nessa coluna sobre xamanismo, bruxaria e magia. Sob vários aspectos estive partilhando algumas reflexões sobre questões que envolvem estes caminhos.
São caminhos amplos, caminhos que envolvem tradições ancestrais, tradições que surgiram como resultado do trabalho dedicado e do estudo sistemático da realidade, por parte de gerações incontáveis de praticantes.
Existem muitas vertentes que se denominam com estes termos, o que exige do (a) buscador (a) sincero (a) muita atenção, pois existe a "Tradição" e existem também muitos "achismos" sobre o que é a TRADIÇÃO, existem ramos deste conhecimento que vem da mais remota ancestralidade, mas existem também ramos bem recentes destes conhecimentos, nascidos do trabalho de pessoas que se interessaram pelo tema, mas ao invés de manter o Saber da Tradição o impregnaram de seus (pré) conceitos.
Há também o (a) iniciado(a) que recebeu conhecimento e energia de uma Tradição e existem aquelas pessoas que se arvoram em herdeiros (as) apenas para fazer desses caminhos campo para seus egotismos, campo para suas idiossincrasias pessoais.
É fácil reconhecer pessoas assim, estão sempre numa atitude proselitista, sempre querendo provar que "seu" caminho é "superior” e tem nos títulos e graus iniciáticos nítida razão para vangloriar-se e se mostrar, deixando óbvio que a iniciação não resolveu nada em sua realidade existencial, apenas serviu para ampliar a vaidade.
Muitas pessoas vão ao poder sem trabalhar a vaidade pessoal, impérios inteiros caíram no passado devido a isso, o mergulho no além, no transcendente sem antes resolver o imanente, o aqui e agora.
Existem muitas tradições e propostas que se apresentam sob essas denominações, é importante frisar que as colocações que faço nestes artigos aqui se referem aos caminhos telúricos, caminhos cuja sintonia com a TERRA enquanto ser vivo e consciente é fundamental.
O ser humano foi se afastando da Terra enquanto ser vivo no seu caminho através do tempo, vamos observar que com o advento da agricultura e das cidades leva as pessoas a terem um ritmo diferente, embora ainda ligado aos ciclos da natureza.
Entretanto, com a ação da Igreja Românica perseguindo as tradições ancestrais dos povos sob seu poder e o advento da era industrial há um rompimento com a percepção dos ciclos naturais e os seres em sua maioria passam a viver em ritmos completamente artificiais, cada vez mais isolados da Natureza.
Portanto, caminhos telúricos exigem todo um trabalho de reconexão por parte de quem foi criado no ritmo da cidade e da industria.
A proposta do Xamanismo, da Magia e da Bruxaria em seus aspectos telúricos diferem um pouco de quem trabalha em cima de uma tradição voltada a seguir preceitos prontos.
Estes caminhos telúricos valorizam a prática, efetiva, estão ligados a uma sintonia efetiva entre quem pratica e os ciclos e forças da natureza, não há adoração de forças ou seres.
Não há projeção de um “pai/mãe” psicológico aqui, há uma clara proposta de compreender entes e poderes como forças impessoais, sem projetar nossos medos (quando transformamos esses seres em demônios) nem projetar nossas carências (quando transformamos esses seres em "anjos"), a proposta é perceber que tais entes são o que são, energia consciente alienígena, com as quais podemos entrar em contato, desde que saibamos o que estamos fazendo.
Nestes caminhos, ritualizar num Solstício, trabalhar com o Sol, não é adorar forças, mas elaborar uma teia de ressonância para estas forças que passam por estes momentos, de poder, como o Solstício, é saber que somos parte do Sol e que ritualizar é reatualizar o mito em nós.
Uma xamã que conheço insiste sempre, quando um (a) praticante destes caminhos se ajoelha na Terra está se "aninhando" no seio de sua mãe, nunca "implorando" ou "subjugando-se' para adorar uma força externa.
Nestas linhas estamos trabalhando com a sensibilidade da pessoa, nestas linhas cada rito, cada celebração acontece em sintonia com as forças da Natureza e suas manifestações.
Somos parte da Natureza, a Natureza nos criou para desempenharmos um papel muito específico num amplo contexto, como enzimas num organismo cósmico nosso existir está em harmonia com o existir da Terra, da Vida e de seus ciclos.
O que chamamos de emoção e raciocínio, estas duas formas que temos de reagir a realidade circundante, não nasce em nós, para estes caminhos fica claro, após as práticas de auto-observação, que as emoções e as racionalizações acontecem em nosso campo emocional e mental, mas não "nascem" em nós.
Assim como nosso código genético, assim como os "karmas", as emoções e raciocínios que reproduzimos vêm sendo elaborados pelos organismos há eras, com finalidades que vão além de nossa compreensão racional.
Este é o primeiro trabalho que uma escola iniciática propõe ao(a) neófito(a) : Aprender sobre si mesmo(a), diferenciar o que fizeram de nós, daquilo que somos em essência, uma essência perceptiva que pode ir além das programações recebidas e originar um ser livre, que nasce de si, para si, num contexto distinto daquele que originalmente nascemos.
Podemos ir além do mero emocionar e aprender a SENTIR, podemos ir além do mero raciocinar e aprender a PENSAR, podemos ir além do mero reagir e aprender a AGIR, mas isto exige dedicação, disciplina, trabalho árduo, pois não temos "tendência" a isto e sim a nos acomodarmos.
Por isso percebemos que todo trabalho iniciático, quando profundo e não apenas formal, tem a fase da morte para a antiga vida e do renascimento para um novo ciclo.
O ser que nasceu dentro deste contexto que chamamos realidade, tem um script pronto, um papel a desempenhar na realidade da vida.
Energias que vem dos planetas e de outras realidades passam por nós e nós as elaboramos para que sejam absorvidas pela Terra, por isso considero a analogia com enzimas perfeita para nossa condição.
Somos metabolizadores de energias diversas no sentido da Eternidade para a TERRA e da TERRA para a ETERNIDADE, daí me parece a origem dos ritos telúricos, momentos nos quais praticamos de forma consciente este nosso papel de elaboradores de energias diversas.
Mas quando queremos ir além disso, quando queremos ir além dessa vida "programada" então surge o caminho iniciático, que nos leva ao confronto com realidades que muitas vezes deixamos de lado.
Este aspecto é bem sutil, há diferenças entre as práticas da Magia, da Bruxaria e do Xamanismo que colocam o ser humano em sintonia com a realidade a sua volta, que permitem ao papel de "enzima" acontecer, os ritos de sintonia com a mudança das estações, com as fases da Lua, enfim vários ritos podem ser praticados , sem que isto signifique uma mudança profunda de consciência.
Gurdjieff diz que temos amortecedores, crenças e posturas existenciais que atenuam ou mesmo afastam nossa percepção de certas realidades existenciais, são as abordagens que herdamos das religiões e de certas filosofias de vida , que servem para "apaziguar" a percepção da realidade, as abordagens "consoladoras".
Assim vamos encontrar muitos caminhos que se denominam "xamânicos", "bruxos" , "mágicos" mas que estão totalmente dentro dos paradigmas dos cultos oficiais, onde as mesmas idéias de "papai do céu" , "pecado" , “culpa" e outros conceitos que são a base das religiões oficiais, são adotados apenas com nomes diferentes, mas expressam as mesmas crenças.
O Xamanismo, a Bruxaria e a Magia são abordagens pragmáticas da realidade, não oferecem consolo, ao contrário, começam o trabalho por vezes doloroso, mas necessário, de desmontar todos os "amortecedores", as explicações que nos deram e as quais aceitamos sobre nossa própria realidade e a realidade a nossa volta.
Estes caminhos são caminhos naturais, ou seja, não valorizam demais a mente racional, pois consideram que mente racional é fruto de uma série de convenções, explicar a realidade é usar palavras e as palavras têm limites.
A palavra é fantástica, tem um poder tremendo, estamos nos comunicando aqui graças à palavra, mas ela tem limites, ela possui fronteiras além das quais não funciona, pois a sintaxe de nossa linguagem é convencionada, vem da memória, dos códigos já apreendidos e o novo, o além da realidade não pode ser expresso com base no já vivido.
Por isto o "silêncio" é tido como o grande revelador, a forma mais sofisticada de conhecimento vem , não da mente racional, mas de um estado de insight que brota a partir de práticas que a este estado alterado de consciência conduzem.
Assim o Xamanismo, a Magia e a Bruxaria tem sua base em práticas, em estruturas de conhecimento que permitem uma participação efetiva do (a) aprendiz em seus caminhos, é considerado conhecimento nestes caminhos o que praticamos, só falar teoricamente de algo quer dizer muito pouco.
Esta crença exagerada na palavra é um atributo desta civilização na qual estamos, vejam que há um "livro sagrado", a “palavra de Deus" e tal. Em caminhos profundos como o Zen, o Taoísmo e outros se tem a mesma percepção que o Xamanismo, a Bruxaria e a Magia, palavras aludem, mas não revelam, a experiência do transcendente precisa ser "vivida" diretamente, as palavras podem explicar um pouco, depois, mas a vivência direta é no "silêncio".
No Xamanismo, na Bruxaria e na Magia a Tradição está contida em ritos e práticas e conhecimentos que restabelecem a sintonia do ser humano com a VIDA, com a NATUREZA, com a TERRA enquanto ser vivo e consciente.
Acreditamos que durante a existência da humanidade fomos contactados por diferentes tipos de seres.
Muitos ramos de magia colocaram esses seres como "Deuses e Deusas" , "Anjos" e também "demônios" quando considerados "inimigos" .
Na Magia, Xamanismo e Bruxaria que estudamos aqui há a plena consciência que vivemos num universo predador, um universo que luta pela consciência e energia.
Assim procuramos evitar posturas de adoração em relação a estas forças e seres, mesmo que alguns deles estejam para nós como uma estrela está para uma vela, ainda assim, são seres, com ciclos de vida incontáveis, mas que nascem e morrem, como nós.
O ser humano vivendo na cidade e longe da natureza pode alimentar algumas fantasias sobre a realidade que não resistiriam se estivéssemos numa mata, numa floresta.
Quando estamos sós numa floresta ficamos agudamente conscientes que estamos entregues a nossas habilidades, ninguém vai nos "proteger".
Da mesma forma, soltos na Eternidade, visitando outros mundos, quando deixamos os mundos da ilusão, os mundos que não geram energia em si mas apenas foram projetados pela força de comunidades ancestrais, vamos encontrar mundos diversos, com seres diversos, com sua própria realidade, realidade que corresponde a seus próprios interesses.
NÃo há "guias protetores" , ou "anjos" bondosos para a concepção do Xamanismo, da Magia e da Bruxaria que estudamos aqui, podemos estabelecer relações de simbiose e mutualismo com seres de outras realidades, mas com todo foco e atenção do contrário estaremos correndo riscos tremendos de nos colocarmos a mercê de forças e seres com seus próprios interesses .
O Xamanismo, a Magia e a Bruxaria que estamos estudando aqui não colocam o ser humano como "ápice" da Criação, aliás a própria idéia de criação é questionada, como já discutimos em artigo anterior, trabalhamos com a idéia de "emanação", fomos emanados, nós e toda a existência, da "Não-Existência" e esta emanação realiza e revela na própria ETERNIDADE algo sobre ELA mesma.
Assim, no trabalho mais profundo e iniciático desses caminhos não temos uma abordagem antropocêntrica da realidade, não vemos entidades apenas com forma humana, nem reduzimos a realidade aos limites da percepção humana, mas procuramos, justamente, desenvolver nossa habilidade de mergulharmos no "não humano", no além do humano, algo que só é possível depois de realizarmos plenamente nossa humanidade, pois para irmos além do humano precisamos antes conhecer o humano, de fato, não nesta postura muitas vezes insossa e alienada que nos é imposta.
Expandir a consciência exige que tenhamos consciência, trabalhar a VONTADE é algo que exige trabalho, capacidade de sair da mera "reação" para irmos a "ação", por isto a auto-observação é fundamental para reunirmos informações sobre o que somos de fato, sobre o que fizeram de nós e então termos a coragem de abandonar o já marcado caminho que nos está destinado para ousar o novo, o impensado.
Então deixamos de "sobreviver" e começamos a viver, algo raro em nossos dias de pessoas que seguem e se alienam de si mesmas.
É um desafio que vale a pena, entretanto.
Nuvem que passa
13 / 5 / 2002 as 08:07:01
Extraído de Pistas do Caminho
Nenhum comentário:
Postar um comentário
deixe seu comentário do texto lido..